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É favorável atravessar a grande água

por HariShabad Kaur


Há um escrito de Fernando Pessoa que diz que é chegado um momento em que precisamos “abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo e esquecer os velhos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares”. É chegado o momento da grande travessia, “e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.


Em meados de 2011, todos nós, alunos do curso de formação de professores em Kundalini Yoga, fizemos uma inscrição junto à secretaria da Abaky, acreditando que faríamos, talvez, um passeio a barco. Um passeio, claro, que teria momentos desagradáveis, mas nada que nos desafiaria radicalmente. Alguns de nós talvez tenhamos previsto percalços e tormentas – desejosos, contudo, de que isso não chegasse às vias de fato.


De qualquer modo, é preciso reconhecer que, no início de 2012, com os pés na margem que nos separava do grande oceano de nós mesmos, poucos de nós imaginava o tamanho das mudanças que estariam por vir. Poderíamos, num esforço de imaginação, prever que sairíamos completamente mudados. Mas o modo como se daria essa transformação e a profundidade com que isso aconteceria estavam muito além do que o nosso horizonte poderia alcançar. Chegamos aqui há pouco mais de um ano. Ansiosos? Receosos? Amedrontados? Expectantes por uma chacoalhada? Sim, talvez. Mas por uma chacoalhada gentil, para a qual poderíamos dar apenas uma parte diminuta de nós mesmos.


Gentil foi a forma como os desafios começaram a aparecer, já nos primeiros meses do curso. E também de forma gentil, outros confrontos os sucederam. Como o movimento inicial das ondas e das marés, o levante começou de modo incipiente, lento, mas também constante. Logo logo, contudo, fomos tomados de sobressalto e nos vimos naquela situação em que não conseguíamos retornar à areia nem, tampouco, avançar em direção ao grande mar. Não, nosso primeiro aprendizado era vencer as ondas revoltosas de nossa própria mente, o caos indomável de nossa indisciplina. E, pensamos: “quanta ironia! Haviam nos dito, antes de tudo começar, que era favorável atravessar a grande água”.


E, bem, vocês sabem, essa fase conturbada, entre a margem e o grande oceano, não foi breve. E em diversos momentos, nos ajoelhamos aos pés do Guru e suplicamos por um momento em que as coisas poderiam ficar melhores. Suplicamos por uma breve brisa de respiro. Mas o desafio precisava se tornar tão inerente à nossa condição de professores que apenas diríamos, quando ele ressurgisse mais uma vez: “Ora, mais um confronto. Vamos lá, eu não me importo”.


Nesse momento de grande provação, tivemos a nosso favor o movimento natural das ondas e, por trás de tudo, é claro, a Corrente Dourada e nossos queridos professores nos sustentando e nos incentivando a desafiar o próprio desafio e seguir nosso compromisso. Pois, afinal, haviam nos ensinado que o primeiro passo em direção à felicidade é o compromisso. Se desejávamos ter caráter, graciosidade e divindade, sim, nós deveríamos ser capazes de domar nossa mente e conquistar nossa disciplina. E nisso de conquistar nossa disciplina, nos foi ensinado que um professor erra, erra e erra, mas a sua disciplina vence. E, então, generosamente nos foi dada, durante esses doze meses, a oportunidade de errar.


Com nossos erros e acertos, nós aprendemos a sermos mais generosos com nós mesmo, a nos olharmos e, não só reconhecer, como saudar nossa verdadeira identidade. Sat Nam Ji! Reconhecer que toda aquela cena inicial de margens e mares revoltosos nos constituía e, por que não dizer logo, foi criada por nós mesmos para que nós nos provássemos que somos capazes de ressurgir das cinzas de nossos medos e karmas e, sempre mais uma vez, renascer. Necessitávamos ser o barco, a tormenta, as ondas, os remos e a ausência deles para, por fim, vencermos o desafio primordial: o autoboicote.


Nessa travessia, nos tornamos capazes de empregar a força do comando e entregar nossas cabeças ao Guru: num equilíbrio de forças apreendido, talvez, a duras penas, mas que, com certeza, exigiu um preço módico a ser pago: a rendição de um velho eu, cheio de medos e de apegos desnecessários. Tudo bem que, às vezes, o pagamento não foi fácil de ser feito, mas, parece, visto desta distância, um negócio da China. Com nossa disciplina e humildade, nós entregamos nossas cabeças e deixamos nosso velho ego aos pés do Guru e, em troca, nós fomos agraciados com um eu com novos hábitos e novo calibre, capaz de manifestar o infinito através de sua finitude.


Sim, o desafio veio incessante. Não poderíamos negar nem disso poderíamos fugir. Mas ao final de todas as contas, o Guru estava apenas testando nossa capacidade de resistir, nos entregarmos e sermos nós mesmos. De seguirmos nosso compromisso e caminharmos na rua do nosso dharma.


E como nos haviam garantido antes de sequer pisarmos nessa terra, nos foi dado, junto à oportunidade de errar, um professor para nos elevar. E que, de fato, nos elevou, sem antes, contudo, nos atiçar, nos provocar e nos confrontar. E, nós, alunos do curso de formação, não tivemos apenas um professor. Tivemos o privilégio de adentrar nesse legado sendo conduzidos por uma equipe primorosa e amorosa, liderada por Guru Sangat Kaur Ji. Aos nossos professores, não poderíamos sair daqui sem render nossas cabeças em pratyahar. Uma imensa gratidão que as palavras não podem tocar a Guru Sangat Ji, Kirn Jot Ji, Satjeet Ji, Sat Kartar Ji, Satya Amrit Ji e Siri Sahib Ji, que nos sustentaram diretamente, que rezaram por nós, que nos inspiraram e que nos provocaram sempre a seguir adiante. A Guru Sangat Ji, em especial, por se dedicar com tanto amor e tanto zelo a esta sangat, a quem também devemos nossa imensa gratidão, por nos servir como uma plataforma de sustentação.


Não poderíamos esquecer as queridas professoras Guru Raj, Krishna e Pritpal que nos trouxeram uma oportunidade valiosa de experimentar os ensinamentos de Yogi Bhajan através de uma geração que primeiro o serviu e que com ele conviveu diretamente ao longo de quase quatro décadas. E aqui, cabe uma gratidão especial a Puranjot Ji e Gurujeet Ji por impedir que, como se diz, nós ficássemos perdidos na tradução.


Agradecemos pela atenção e carinho também a Sat Sangat Ji que primeiro nos recepcionou antes de toda a travessia começar e que continuou a nos dar suporte sanando nossas dúvidas de principiantes.


Last but not least: a Yogi Bhajan por ser quem é, por ter feito o que fez, por existir.


Para finalizar, gostaria de resumir dizendo: durante todos esses meses, fomos tocados no lugar mais íntimo de nós mesmos, fomos surpreendidos experimentando uma dimensão de amor, de compaixão e de serviço tão puros, tão radicalmente divinos, que não poderíamos sair daqui de outra forma se não nos autoiniciando e nos tornando professores.


Por fim, depois de toda essa longa e desafiante travessia, poderíamos dizer apenas: Sat Nam Wahe Guru. Ou ainda: Wahe Guru Ji Ka Khalsa, Wahe Guru Ji Ki Fateh! (“Os puros de espírito pertencem a Deus, A vitória pertence a Deus”)


Discurso como oradora da turma de 2012 de professores de Kundalini Yoga

Abaky – Centro Guru Ram Das

Belo Horizonte, 24 de fevereiro de 2013

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