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A luz de um legado em contextos de destruições

Por Sunderta Kaur


A história do povo curdo tem cerca de 6 mil anos, em um território que é considerado o berço da civilização, onde atualmente localizam-se a Turquia, a Síria, o Iraque e o Irã. Essa região esteve sujeita a vários impérios como Assírio, Babilônio e Persa, Abássida, Turco Seldjúcida e, mais recentemente, o Império Turco Otomano. Os otomanos sempre foram conquistadores, como praticamente todos os demais impérios, porém negavam ao conquistado o direito de existir segundo sua própria identidade étnica. E assim os otomanos o fizeram com os curdos, que, por sua vez, mesmo excluídos das relações sociais e econômicas, sempre tiveram um forte senso de identidade e independência e se negavam a se subjugar às tiranias dos imperialistas.


Por habitarem uma região marcada por conflitos e por um contexto histórico conturbado que se agravou desde a Primeira Guerra Mundial, o povo curdo é a maior população sem Estado Nação do mundo. Entretanto, mesmo diante de tal situação, eles não se deixam abater. Os curdos souberam retirar de suas duras experiências lições significativas para enfrentar os ataques que recebem ao longo de sua história.


Atualmente, eles vivenciam dois tipos de conflitos: a guerra civil na Síria, iniciada em janeiro de 2011, e os ataques do chamado Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS), a partir de 2014. Por ter a pretensão de sujeitar os povos ao jugo de leituras dogmáticas do Islamismo e um puritanismo radical e exclusivista da interpretação distorcida desses cânones, o conflito com o ISIS apresenta novas ameaças aos diversos povos da região, inclusive os curdos.


Mesmo sob violência e repressão, os curdos continuam a luta por libertação, ao mesmo tempo que buscam construir um novo modelo societário, ao qual nomeiam Confederalismo Democrático. É, em meio a diversos ataques e sob ruínas, que os curdos estão criando esse novo sistema sóciopolítico que tem como pilar uma verdadeira democracia popular, ampla, paritária, feminista, inclusiva e ecológica. As decisões são tomadas e exercidas em conselhos e assembléias comunitárias organizados pela população que vive nas cidades, províncias e vilarejos, respeitando a paridade de gênero e etnia.

As mulheres têm tido um papel fundamental nessas transformações. Elas assumiram a liderança em todas as esferas da sociedade e estabelecem uma representação igual nas estruturas de governança com a garantia de 50% de cotas e princípios de copresidência. O movimento de libertação de mulheres conta também com unidades autônomas de defesa, academias e cooperativas econômicas.

As unidades autônomas de defesa das mulheres YPJ (Yekineyen Parastina Jinê) formam um exército de mulheres que atuam nas fronteiras, cidades e vilarejos com o intuito de proteger a população local (sobretudo as mulheres), atuando junto ao exército masculino, o YPG (Yekineyen Parastina Gel). O YPJ e YPG guiam-se através de valores éticos da sociedade curda que vem desenvolvendo um sistema judicial que preza pela paz e pelo consenso e que tem trocado o conceito de justiça punitiva pelo de justiça restaurativa. Os curdos abominam qualquer tipo de prática violenta contra prisioneiros. A exemplificar: quando os curdos se tornam prisioneiros de guerra das forças islâmicas fundamentalistas, são geralmente decapitados vivos; ao contrário, quando as unidades de proteção curda capturam seus inimigos, eles são presos e passam a receber aulas sobre princípios morais e éticos, pluralismo, tolerância religiosa e feminismo. Há relatos positivos que demonstram a força restaurativa de ações como essa, como o trecho a seguir evidencia:


“Em 2012 ocorreu um caso de cinco prisioneiros do grupo fundamentalista Al-Nusra que, após serem libertados, voltaram às filas do seu antigo grupo, mas ali capturaram cinquenta de seus antigos companheiros para levá-los ao Curdistão sírio para que também recebessem ensinamentos.”[1]


As aulas sobre princípios éticos são fomentadas por academias dirigidas por mulheres. Esses espaços promovem a auto-organização das mulheres em vários âmbitos como comunicação, arte, cultura, literatura, economia e política., Sob uma ótica feminina, estimulam-se a crítica, a autorreflexão e o desenvolvimento de conteúdos democráticos, através de grupos de estudos, cursos e demais atividades. Esse movimento tem gerado significativas mudanças nas estruturas mentais dos homens e, por consequência, de toda a sociedade.


Existem também as cooperativas econômicas que visam redistribuir de forma justa os recursos econômicos, objetivando o investimento nos benefícios sociais e não a acumulação de riqueza e o excesso de produção, prezando inclusive por uma produção ecológica que respeite o meio ambiente, monitorando e limitando, por exemplo, alguns tipos de atividades industriais. Preocupados também com os solos de territórios devastados por bombardeios, o Comitê Ecológico de Cizire Canton, no norte da Síria, criou o projeto “Make Rojava Green Again” que consiste no reflorestamento de áreas devastadas pela guerra.[2]


Esses são alguns exemplos do que vem sendo construído pelo povo curdo em meio ao caos da guerra. Embora seja o que muitos chamam de viver a utopia, percebe-se a existência concreta de uma sociedade que está construindo um novo modelo sociopolítico, que preza por valores de coexistência e abre as portas para etnias de todos os pontos cardeais, respeitando identidades, situando todos em posições de igualdade, sobretudo as mulheres. Esse novo modelo societário tem afrontado os pilares de sustentação de desigualdades, domínio e opressões utilizados antes por impérios e atualmente por estados nações e outros entes políticos que fomentam guerras de acordo com seus interesses políticos, jogando com a vida de diferentes etnias.


“Entretanto, os curdos existem” (ÖCLAN, Abdullah DATA), e eles compreenderam, através de suas experiências, as nítidas armadilhas das sangrentas disputas por poder e território entre as etnias, muitas vezes orquestradas pelos “de cima”. São outros os valores e poderes que os curdos e outras etnias juntos reivindicam, como pode ser visto em um trecho de um contrato social:


“Nós, o povo das regiões Autônomas Democráticas de Efrin, Kobane, Cizire, uma confederação de curdos, árabes, assírios, caldeus, arameus, turcomanos, armênios, e chechenos, livre e solenemente declaramos e estabelecemos esta carta, que foi redigida de acordo com princípios da Autonomia Democrática. Na busca por liberdade, justiça, igualdade, dignidade e sustentabilidade ambiental, a Carta proclama um novo contrato social, baseado na coexistência mútua e pacífica e na compreensão entre todos os componentes da sociedade. Protege os direitos dos povos à autodeterminação. [...] construindo uma sociedade livre de autoritarismo, militarismo, centralismo e da intervenção da autoridade religiosa nos assuntos públicos.” [3]


Por esses mesmos motivos, o povo curdo não tem recebido o devido apoio e a atenção da comunidade internacional, sendo ignorados e comumente ocultados, em meio a confusas e superficiais notícias sobre a rumorosa guerra civil na síria, quando não são taxados de terrorista e separatistas.


A Turquia, região onde está localizada a maior parte da população curda, é um desses estados que se opõem a este modelo societário, com proibição inclusive do uso da língua curda, negando através desse e outros recursos o reconhecimento da identidade étnica, política e territorial curda.


No fim de janeiro de 2018, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, por meio de uma campanha nos meios de comunicação turcos, ameaçava atacar a região de Afrin, de maioria curda do Norte da Síria, caso as forças de proteção curdas não se retirassem, sob o pretexto de uma suposta segurança das fronteiras da Turquia.


Afrin, bem como as forças de autodefesa curda, nunca ameaçou a Turquia, pelo contrário, eles têm lutado há anos contra a barbárie do ISIS, com o objetivo de não somente libertar o povo curdo do Norte da Síria, mas também proteger a humanidade do terror do autodenominado Estado Islâmico. As forças de defesa curdas, YPJ e YPG, baseadas em princípios de atuação militar apenas para autodefesa, nunca atacam e não têm pretensões expansionistas, e elas consideram que essa batalha, como dizem os próprios curdos, é travada “não pelo território, mas pelo tempo”.


Os ataques da Turquia com bombardeios aéreos e ofensivas contra vilas repletas de civis inocentes têm gerado centenas de vítimas. Milícias apoiadas pelo governo turco, mataram, mutilaram e exibiram o cadáver de uma combatente curda com o objetivo de espalhar o terror entre as mulheres. Tudo isso demonstra as cruéis pretensões do governo turco, sobretudo no que diz respeito aos avanços societários protagonizados pelas mulheres curdas.


Em 8 de fevereiro de 2018, a força aérea turca bombardeou as ruínas do templo de Ishtar, em Ain Dara, onde haviam vestígios de uma cultura matrilinear (marcas de passos e um leão alado que demonstrava a presença da deusa no templo). Isso demonstra o desrespeito pela história dos povos que vivem e viveram naquela religião e a hostilidade por qualquer vestígio de força e soberania feminina, seja a demonstrada pelas mulheres do presente ou as mulheres dos povos que já passaram pela região em tempos passados.


Mesmo diante de tanto sangue derramado e sob a face contínua da morte, o povo curdo e suas bravas guerreiras com suas armas e lenços floridos amarrados na cabeça, seguem na “batalha pelo tempo”, pois compreendem que mesmo perdendo algumas batalhas, produziram no seio de sua sociedade um forte legado.

Os curdos e as curdas têm respondido ao terrorismo do estado turco e do ISIS, não somente nos frontes de guerra, como também, ocupando as ruas com multidões, dentro e fora do território Turco. O povo curdo, sobretudo as mulheres, tem clamado por reconhecimento e apoio internacional. Eles precisam que suas vozes ecoem pelo mundo.


Nós, que prezamos a justiça, a paz e a igualdade entre todos os seres temos que ouvi-los, apoiá-los e protegê-los, não só por serem seres humanos, mas por serem um povo com direito de existir plenamente em sua cultura, história e identidade. A ousadia e coragem dos curdos tem trazido luz ao oriente médio e inspirado o ocidente a rever “fórmulas prontas” e impositivas de velhas políticas que reforçam hierarquias, desigualdade e opressões que subjugam outros povos.


Link de vídeos com algumas imagens do povo curdo: Vídeo I https://www.youtube.com/watch?v=CECtQirn9Qw




[1] SORES. “Crónicas desde Rojava parte III: Marzo, Abril y Mayo”, 13 junho de 2015 http://rojvanoestsola.noblog.org/post/2015/06/13/cronicas-desde-rojava-parte-iii-marzo-y-abril. Acesso em 4 de maio de 2016./ p. 153 Apud p.153 (A Revolução Ignorada: Liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no oriente médio. Ed: Autonomia Literária


[2] Make Rojava Green Again! Pictures gallery – February 2018. Acesso em: <https://internationalistcommune.com/mrga-pics01/>


[3] Charter of the Social Contract: http://peaceinkurdisancampaign.com/resurces/rojava/charter-of-the-social-contract. Acesso em 29 de Abril de 2016. APUD 153 (A Revolução Ignorada: Liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no oriente médio. Ed: Autonomia Literária.

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